quinta-feira, setembro 06, 2007

anna friedman gonzalo.

caçula

anna tinha preservado da infância a mania de pensar. digo, pensar não como um ato natural da vida, mas como um hobby. na hora do almoço, assim que chegava da escola, escolhia não comer de propósito pois achava que o jejum era a melhor forma de pensamento, o corpo não se ocupava de nenhum desses obstáculos "fúteis" como ela mesma costumava dizer e podia enfim se concentrar na mente. nas primeiras horas, deitava na cama, sempre de barriga pra cima e ligava um tal botão. "hora de pensar". não que fosse totalmente fácil porque de meia em meia hora se adentrava alguém no quarto, ou o telefone tocava, ou então ela mesma estava distraída demais para se concentrar. lembrara que nessa idade ela pedira a mãe para por uma chave no seu quarto, tendo como resposta que crianças não mereciam tanta confiança. nas vezes que alguém a pegava no meio desse processo, rapidamente fechava os olhos e fingia estar dormindo - mas essa menina só dorme, ela não faz nada na vida. quero ver quando for adulta, deixa ela josé, deixar?
quando o dia estava muito agitado e era mesmo impossível se concentrar, ana ia para a banheira, deitava, experimentava cobrir os ouvidos dágua e fechava os olhos. para ela, quanto mais os sentidos estivessem bloqueados, mais conseguiria entrar dentro de si mesma. chamava isso de 'abrir os olhos do pensamento'.
lá com seus vinte anos, ao se mudar para um apartamento pequeno, fez questão de escolher um lugar que tivesse banheira e logo que se mudou tratou de providenciar uma chave para a porta. embora mesmo morasse apenas com uma amiga e elas pouco se trombassem. o apartamento era de dois quartos, tinha uma pequena sala de estar, cozinha pequena com uma copa e ainda mais um quartinho de empregada, onde naturalmente só tinham entulhos.
no cartório, seu nome, anna friedman gonzalo. mas nem sempre era esse o nome que usava. às vezes o assinava com um 'n' só, às vezes assinava só fried. às vezes nem assinava. quando a perguntavam a causa dessa inconstância, simplesmente respondia - não entendo porque a gente tem que ter um nome só. eu não tenho.

de madrugada, a sua hora preferida ficava entre as 2h e as 5h da manhã, sentia que esse espaço de tempo reservava todo o mistério da vida. talvez isso fosse mais um pensamento dos seus 12 anos, quando ficava acordada propositalmente acreditando que se mantivesse bem a concentração poderia ver os sonhos e os desejos de qualquer um. de uma forma ou de outra o costume insonial não foi embora e a melhor parte da casa, depois da sala, aquela hora, era a cozinha. havia algo mágico na cozinha o tempo todo. que a deixava leve e tranqüila. se ela fosse uma escritora, se um dia ela fosse uma escritora. se ela se importasse em ser uma escritora. certamente escreveria sobre a cozinha. mas isso lá não tinha tanta questão.

uma das primeiras noites no apartamento ana resolvera pintar o quarto e assim o fez, de uma hora para outra as paredes todas estavam pintadas de verde e marrom. ao terminar o trabalho, sentou no chão e ficou estagnada. olhava para tudo o que tinha feito de forma quase pálida, parecia estar sendo absorvida pelas paredes quando começou a chorar. soluçou triste. sua amiga, giovana, giovanna, gio, acordou e não entendeu o que estava acontecendo. ao tentar se aproximar, a amiga se esquivou, subiu para cama e adentrou num sono instantâneo e quase profundo. inexplicavelmente ana não era nenhum tipo de enigma nem uma solução. era apenas um fato. ela acontecia e ninguém que se relacionava com ela o suficiente para conhece-la um pouco tinha a pretensão de compreende-la, a deixavam dessa forma sabendo que nada adiantava tomar outra atitude. do mesmo jeito, gio ao ver a amiga dormindo, virou-se e voltou para o quarto sem nem se perguntar o porquê.


do verbo trepar

na sua adolescência cultivou alguns namorados. transou algumas vezes. beijou algumas outras. Se, se apaixonou. não sei. nunca vi ana sair de si. na verdade, essa sempre foi a sua maior característica, estava sempre submersa em si mesma. todas as relações que ela teve, e que ela tinha, vieram com um sopro de vento e assim se foram. sem muita magia, sem muitas agonias.

Felipe seu primeiro namorado, cabelo castanho escuro, menino doce, tão doce que ana gostava de ficar com ele só pela suavidade. nunca a invadia nem nunca procurou entender um pouco mais daquela menina tão diferente. talvez fosse mesmo isso que o encantasse, aquele pequeno mistério e que fazia da vida uma brincadeira infantil. ficaram juntos boa parte do colegial e mais um ano de faculdade. pouco conversavam. eram mais dos pequenos gestos e da companhia. muitas foram às vezes em que saiam juntos e não trocavam uma só palavra. conseguiam se entender num jeito só de olhar. só de agir. o lugar preferido dos dois, e foi determinado como lugar preferido só por ser determinado, pois ninguém o fez explicitamente, era a praia da joatinga. segunda-feira de manhã era sempre o melhor dia. todo mundo começando a rotina. e eles às vezes matando aula numa sapequice ingênua. sentavam na areia, sentiam se seguros pelas rochas ao redor e ficavam olhando o horizonte. de quando em vez um deitava no colo do outro e só. aquilo bastava. com o passar dos anos o pai de felipe vinha tendo planos para o filho único, no primeiro ano de faculdade no qual os dois resolveram cursar letras, o menino logo foi mandado para exterior, foi estudar alguma coisa qualquer para seguir os desejos do pai e eles terminaram assim. sem uma palavra e sem uma tristeza. terminaram do mesmo jeito que começaram por terminar e começar. ana o abraçou naquela quarta-feira e sorriu. felipe a beijou a testa e deixou cair uma lágrima de beleza no olho esquerdo. depois disso. depois disso passaram-se dois anos e os dois, nunca mais se ouviram falar.

seu segundo namorado foi antônio. esse já um pouco mais agitado. conhecera ali mesmo na faculdade. só que o outro cursava engenharia. nem sabia porque cursava engenharia. mas cursava engenharia. ele gostava de ficar contando as sardinhas das costas de ana. e assim, se entenderam por algum tempo. ana sentava ao sol, ele se punha atrás dela e começava a fazer canções e inventar historinha de uma sardinha conhecendo a outra. num dia qualquer, parece que ele conheceu uma loirinha idiota e os dois pararam de se ver. naturalmente. assim como começaram. naturalmente. mais uma vez.

o terceiro namorado foi marco antônio. era um playboyzinho chato. aliás, era assim que normalmente o chamariam. baixinho, encrenqueiro. gostava dos cabelos de ana, dos olhos profundos e rasos e que nada diziam e que tudo diziam. ana nunca havia prestado tanta atenção nele, e como um bom baixinho, talvez isso soasse como um desafio. marco tinha um carro o qual ganhara de seu pai com dezoito anos, agora com vinte o trambolho já havia passado por umas oitenta reformas e ganhara o nome de cajuzinho. vai entender porque, nada precisava ter um porque. as terças e quintas ele pegava ana e os dois iam passear, fazer qualquer coisa que um casal de namorados poderia fazer, inclusive transar bastante. ela nunca opinava e não fazia questão. ele adorava ser o macho. às sextas, com o cajuzinho, iam para um bar conhecido, bebiam algumas coisas, ana gostava de vinho. marco antônio uma cerveja. e mais outra. e mais umas infinitas. certo domingo, num churrasco qualquer, marco havia passado da conta do álcool e começara a se irritar com tudo. até se ana abaixava a cabeça ou se ana mexia o braço. mas ela não se importava, continuava fazendo as mesmas coisas e ele, na verdade, ele é que se importasse com o que quisesse. algum tempo depois, marco por qualquer motivo agarrou ana no braço, quis impedi-la de fazer qualquer coisa, segurou firme e a olhou com olhos de cachorro. ela com os mesmos olhos que diziam tudo e não diziam nada. olhou serena e vazia e qualquer coisa de volta. plana, a serenidade o assustou. marco tremeu a retina, suspirou com raiva e saiu andando. depois disso. depois disso nunca mais. e mais uma vez, tanto fazia.


a música

em alguns anos ainda no ensino médio, ana participou do coral do colégio. um coral um tanto erudito, mas ajudava a passar as tardes tranqüila. e cantar, cantar era uma forma de abstrair também os outros sentidos. era um pensar corporal. ana gostava de qualquer coisa assim. que concentrasse uma mente só. do corpo ou da consciência.
lembrava de ter visto algumas vezes felipe na platéia a observando enquanto cantava. gostava daquele menino ali, e quando foi embora, não se preocupou em sentir saudade. cantar. cantar era a única função. depois que cansou disso, tomou um curso de flauta transversa com um tio músico. agora durante as tardes costumava tocar na janela e observar o mundo sem estar a observá-lo nem a incorporá-lo completamente.

gio tinha um violão, e nas vezes em que as duas ficavam sozinhas em casa, sem nada para fazer, sentavam no quarto de ana, que quase não tinha móveis, no colchão posto no chão e inventavam algumas canções. nessa hora, ana olhava para suas pintinhas e lembrava de antônio, aquele menino animado e sem caminho. nem sequer pensava no rumo que ele haveria tomado. nem sequer se importava. lembrava que havia sido bom e só. as coisas não precisavam ir além.

já marco antônio não gostava de música. talvez sempre por isso lembrava dele. pensava que a ausência de algo era sempre a melhor forma de marcar sua presença. pensava nele, lembrava daqueles olhos de cachorro e sorria. achava graça, por mais bruto e perdido, marco era engraçado. acho que era por isso. ana achava que era por isso que ficara com ele tanto tempo. digo, tanto tempo comparado ao que ela não ficaria com ele. baixinho e invocado, marco era uma piada gostosa.

no final da noite, lembrava de vez em quando também de seu pai. morrera quando tinha lá para seus 15 anos, quando estava começando a namorar felipe. ele quase não falava com ela. quase não falava com ninguém. quase não aparecia. sempre escrevendo naquela velha maquina de escrever. - mas josé, você vai continuar usando essa geringonça? vê se me deixa. - e virava de novo e continuava a trabalhar. escrevia escrevia escrevia. aquele som era bom. tec tec tec tec.

já a mãe. a mãe ela só lembrava quando o telefone tocava. ele não havia nenhum outro motivo para tocar. só ela. a mãe era a única força movida pelo telefone. desequilibrava toda a serenidade da casa. mas com o tempo, com o tempo aquele som irritante passou a ter seu ritmo e assim, assim tudo voltava a se equilibrar. sem muito esforço. sem muito nada.

a única coisa que desagradava ana eram os passarinhos. todos aqueles lindos passarinhos piando de manhã. isso não tinha desculpa. não tinha perdão. aqueles passarinhos eram terríveis e ela não entendia porque de manhã. porque, logo de manhã! com o tempo acolchoou sua janela com pequenas esponjas, e parece ter feito um bom negócio. o som dos daqueles pintinhos bastardos só a atrapalhavam quando o sono era leve. de resto, dormia feliz.

externalizou

foi aos 23 anos que aconteceu um fato realmente marcante. mas se eu o conto como um fato já marcante, talvez ele não soe tanto assim. para ana foi. para ana foi e ela nem sabia.

num dos dias, se divertindo sozinha como de costume começou a vestir algumas roupas e interpretar personagens no espelho, fez muitos até achar um casaco que parecia um de pirata. gostou do estilo, pôs uma calça qualquer preta, um cinto de marco que permanecera por lá, uma blusa branca meio desbotada, pegou um colar de gio que parecia algo como uma ancora. na verdade, ela fingiu que parecia uma ancora. pôs um chapéu marrom escuro e desgostou dos seus cabelos. fez um rabo e continuou desgostando dos cabelos. enfim, jogou tudo para dentro do chapéu e ficou parecendo como se tivesse os cortado. fez uma expressão de quem é pirata a muito tempo e riu satisfeita. seus seios não eram mínimos, mas também não eram grandes. eram seios justos. de alguma forma nem se apercebiam naquela roupa extravagante. seu rosto era delicado e suave. não tinha grandes traços femininos, nem grandes traços masculinos. tinha apenas traços. quase sem cílios, quase sem sobrancelhas. olhou mais uma vez para o espelho e falou: meu nome é anna friedman gonzalo. não. meu nome é gonzalo.

saiu na rua e foi até o bar onde ia sempre na época de marco. sentou na mesa e de instantâneo lembrou uma imagem de seu pai pedindo gin ao garçom. sempre com pose de homem. - traz um gin meu camarada! - copiou-o exatamente. sorriu de um jeito de sorrir bonito, como antônio sabia fazer e apoiou o braço sobre a mesa. como marco. como antônio. como seu pai. como todos os homens, menos felipe.

bebeu um, dois, três copos de gim e se sentiu feliz. falava alto com o garçom e tinha uma risada graciosa. quando a madrugada já vinha despencando decidiu voltar pra casa e assim o fez. depois disso, periodicamente anna começou a ser gonzalo. toda quinta-feira. gonzalo aparecia naquele mesmo bar, onde os camaradas, como chamava quase todo mundo, já o tinham nomeado o rei do gim. - meu nome é gonzalo. - e todos se divertiam com ele. com ela. com ele e com ela. numa das vezes, inesperadamente uma loira. bochechas macias. cabelos curtos e nem muito curtos, cacheados um pouco, lisos um outro pouco. sentou-se numa ousadia qualquer na sua mesa. bem a sua frente e disse - serei a rainha do gim essa noite. - anna não gostou da intromissão, ou pareceu não gostar e procurou não dar atenção para a moça. chamou o garçom e pediu uma vodca. - então você não vai olhar pra mim? - ana se concentrou, tomou um gole de vodca e cantou dentro de si qualquer melodiazinha que a fizesse esquecer os outros sentidos de percepção. mas não adiantava. ela sentia uns olhos plantados nela. e lá estavam eles. intactos. fixos. abusivos. ana levantou a cabeça, por um segundo sentiu uma vontade de chorar e só pode resmungar - meu nome não é gonzalo. muito bem, gonzalo que não é gonzalo, qual o seu nome? anna. anna friedman. é um belo nome, você aceita um cigarro? não fumo. ah, só o gonzalo que fuma então? talvez. anna você e corajosa? quero dizer, você tem culhões? - foi o único momento em que ana conseguiu olhar diretamente nos olhos da mulher - não importa.

sexta. sexta-feira como haveria de ser. acordou num salto, ainda estava escuro, ou não, na verdade eram as cortinas. deus, será que eu estive tão bêbada que sequer me lembro da noite passada? e não sabia mesmo. como havia chegado em casa. e qualquer coisa. sentiu medo. como um medo nunca sentido. anna não era dos medos.

quinta-feira próxima ana não foi ao bar. não vestiu a roupa de gonzalo. não lembrou da loira. não fez mais nada. ana foi só ana. como sempre havia sido. e esqueceu. esqueceu pra sempre quem fora anna friedman. e quem poderia ser.

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